quarta-feira, 9 de março de 2011

O VALOR ÉTICO-POLÍTICO DA AMIZADE: UMA VISÃO SOCRÁTICA, NARRADA POR XENOFONTE*

Professora Silvia Gombi Borges dos Santos

* Originalmente apresentado em forma de conferência, este estudo foi publicado em CIDADANIA E JUSTIÇA - Revista do Curso de Direito de Ituiutaba, Ano 4 - Número 7 - Jan./Jun. 2001 (Universidade do Estado de Minas Gerais, campus fundacional de Ituiutaba).

Escolhi, para falar-lhes, nesta noite, sobre o tema da amizade - ou, mais especificamente, acerca do sentido socrático atribuído à amizade.

Imediatamente, porém, surgem questões, como estas:

Por que, a amizade? Antes, o que é a amizade? É um sentimento, uma virtude? Uma inclinação natural a que estamos sujeitos, ou algo que se aprende, se adquire?

Somos levados a perguntar acerca do significado que essa palavra assume para nós, homens contemporâneos; ou, de modo mais radical, se a amizade tem hoje, ainda, um sentido, algum sentido... Por outro lado, por que, qual interesse teríamos em conhecer a perspectiva socrática a partir de um autor como Xenofonte?

Associar a figura de Sócrates à idéia de amizade, afinal, não nos parece de todo estranha: ao evocarmos o nome do iniciador da filosofia clássica, imediatamente nos vem à mente a imagem de um homem, descuidado das coisas deste mundo, perambulando pelas ruas e praças de Atenas e - sempre cercado de discípulos, que eram - também - amigos! ...

Lembremos ainda que a amizade encontra-se inscrita na raiz do próprio nome dado àquela atividade desenvolvida por Sócrates e seguidores, àquele tipo de exercício intelectual a que se denominou filosofia - amor, amizade ao saber, à sabedoria, inventado pelos gregos por volta do século VII - VI a.C.

Comecemos, então.

Tecnicamente, a amizade é definida por especialistas, como André Lalande, como uma "inclinação eletiva recíproca entre duas pessoas morais".

Essa inclinação --- que é eletiva, seletiva - é considerada em termos de afinidade. Por afinidade, devemos entender: aliança ou semelhança. Essa aliança se traduz por uma ligação ou atração resultante de uma semelhança.

Em poucas palavras, a amizade é algo que envolve seletividade e semelhança. Enquanto "inclinação eletiva recíproca", a amizade opõe-se ao amor, no sentido de inclinação sexual, e ao amor, considerado em termos de inclinação ou apropriação egoísta. A amizade não envolveria, pois, a característica sexual; estaria também associada a relações de reciprocidade e até à idéia de abnegação, de renúncia em favor do amigo .

De posse desses conceitos, voltemos ao berço do pensamento racional - à Grécia - ; voltemos a Sócrates e à sua imagem de filósofo, um homem cercado de discípulos que eram, ao mesmo tempo, amigos! Entre eles, encontramos um em especial: Xenofonte.

Quem era Xenofonte? Como esse discípulo particular encarava o mestre?

Historiador, filósofo e general grego, Xenofonte teria nascido em 430 e expirado em 355 a.C.. Tido como inquieto e perspicaz, participou de vários combates.

Em 396 - três anos após a morte de Sócrates - colocara-se a serviço dos espartanos; lutara contra os atenienses em Coronéia, em 394 a.C., ano em que fora banido de Atenas. No exílio, perto de Olímpia, teria escrito grande parte de sua obra, a qual inclui, além dos textos relativos a Sócrates, relatos históricos (Helênicas), obras técnicas (A Economia; A Equitação), obras políticas (A República dos Espartanos) e um romance histórico (A Educação de Ciro).


Para nossos propósitos, no entanto, convém destacarmos a condição de Xenofonte - discípulo dileto e amigo de Sócrates, a quem dedicava forte admiração. Em seus Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates5 , descreve-o com os seguintes termos:

"...Dentre quantos o conheceram, todos os que amam a virtude não cessam de lamentá-lo qual o melhor auxiliar à prática do bem. Quanto a mim, que o vi tal qual o pintei: piedoso, de nada fazer sem o assentimento dos deuses; justo, de nunca por nunca fazer o menor mal a ninguém, ao contrário prestar os maiores serviços aos que o freqüentavam; morigerado, de jamais preferir o agradável ao honesto; prudente, de nunca enganar-se na apreciação do bem e do mal, capaz de penetrar todas estas noções, explicá-las e defini-las, hábil no julgar os homens, apontar-lhes suas faltas, encaminhá-los à virtude e ao bem - figurava-se-me fadado a ser o melhor e o mais ditoso dos humanos". E conclui sua apologia, seu elogio a Sócrates de forma incisiva: "se alguém houver que comigo não concorde, compare o que foi Sócrates com o que são os outros homens e julgue!"

O que fora Sócrates, em poucas palavras? Homem bondoso, respeitador dos deuses; justo, prudente, sábio e virtuoso; enfim, o melhor dos mortais, segundo Xenofonte. Porém, ao traçar tão belo perfil do mestre, teria, ele, exagerado? É possível que não.

Embora não revelasse, em seus escritos, a profundidade, a sutileza e a poesia de um espírito como o de Platão, Xenofonte teria, a contar a seu favor, a clareza, a "transparente simplicidade de sua linguagem", o estilo direto...

Por essas qualidades, o elegemos para nos apresentar as idéias de Sócrates acerca da amizade, e dos meios através dos quais pode-se conquistar um amigo.

Em Memoráveis, II, VI, Xenofonte narrará a conversa entabulada entre Sócrates e seu discípulo Critóbulo . Este, quer saber de Sócrates - pontualmente - como conseguir um amigo. Só que a resposta esperada não virá, de modo algum, de forma tão pontual...
Critóbulo pergunta, demanda conselhos, orientações ao sábio mestre: "se precisássemos de um amigo, quem procuraríamos?"

Sócrates responderá, estabelecendo as características necessárias a um amigo.

Em primeiro lugar, ser capaz de dominar o ventre e as paixões da bebida, da sensualidade, do sono, da indolência, pois quem obedece a tais paixões nada faz de útil a si e ao amigo.

Também, alguém que não fosse perdulário, gastador, esbanjador, pois não precisaria nos pedir emprestado e nem se ofenderia, caso recusássemos atendê-lo.

Seria conveniente termos como amigo alguém que soubesse aumentar seus haveres, suas posses, mais amigo de receber do que devolver!
Mas, deveríamos nos afastar do aurissedento, do sedento de ouro em demasia; da mesma forma que deveríamos evitar o rixoso, ou, o encrenqueiro e o ingrato - aquele que recebe o bem e se esquece de retribuir!

"Então, pergunta Critóbulo, quem devemos procurar para amigo?", ao que Sócrates responde: "aquele que tenha as qualidades contrárias"! Ou seja, "senhor dos apetites sensuais, fiel a seus juramentos, condescendente nos negócios, que não fique atrás dos que o beneficiem, pronto a servir quem o sirva".

O discípulo insiste: como reconhecer no pretenso amigo as qualidades apontadas sem pô-lo à prova?

Sócrates recorre a um exemplo bastante claro: o dos estatuários. Para julgá-los, pondera, "não vamos atrás de suas palavras; fiamo-nos em quem tenha executado belas estátuas".

O mestre induz o discípulo a estender o mesmo raciocínio para a busca do amigo:
Sim, aquele que "proceder bem com os amigos que já teve, de certo procederá da mesma forma com os que vier a ter".

Uma outra analogia aqui é feita sobre o reconhecimento do amigo: o cavaleiro, ao ser visto montar bem alguns cavalos, seria tido como capaz de o mesmo fazer em relação a outros animais .

Porém, o discípulo, nesse momento, retorna à pergunta inicial, insistindo que - uma vez que o amigo atenda aos requisitos necessários, sintetizados na condição de que ele seja digno de nossa amizade, ainda assim, como fazê-lo amigo?

Responde, Sócrates: precisamos, antes de tudo, consultar os deuses e "ver se nos aconselham a fazê-lo nosso amigo".

Ao estabelecer essa condição, sugere-nos Xenofonte que eram infundadas acusações de impiedade, imputadas ao mestre, que o teriam levado, juntamente com as alegações de corrupção da juventude ateniense e introdução de crença em novas divindades, à condenação e morte em 399 a.C..

Sócrates indica, então, a necessidade de se consultar os deuses. Mas, essa resposta não satisfaz a Critóbulo, o qual, impaciente, pergunta novamente:

"... Uma vez confirmada nossa escolha, pelo consentimento dos deuses, poderás dizer-me como caçaremos nosso amigo?"

Tendo evocado a divindade, responde Sócrates indicando o que não devemos fazer: "não será correndo-lhe no encalço, como a lebre, nem com reclamo, como aos pássaros, nem de força, como aos inimigos".

Não devemos, em suma, constranger o nosso possível amigo, pois, palavras de Sócrates, "árdua tarefa seria conquistar um amigo contra sua vontade. Nem que o encadeássemos qual escravo, lograríamos retê-lo. Semelhante tratamento criar-nos-ia antes inimigos que amigos".

Insiste, então, Critóbulo, como que retornando à questão original, inicial do diálogo: "Como, então, conseguir amigos?"

Um tanto misterioso, responde Sócrates, aguçando ainda mais a curiosidade do discípulo:

"Dizem existir certas palavras mágicas, que, sabidas e pronunciadas, fazem amigos nossos quem quer que queiramos, filtros cujo conhecimento serve para fazer-se amar de quem se queira".

Sócrates, aqui, não se responsabiliza diretamente pelo conselho, mas parece endossar, aceitá-lo. Consiste, nada mais, nada menos, em palavras, certas palavras mágicas... que levam à afeição.

Nesse momento do diálogo, cumpre ressaltar dois pontos importantes. O primeiro, refere-se à força desempenhada pela palavra, pelo logos entre os gregos.

Como se sabe, o uso da palavra é liberdade, revela, quanto a quem a domina, tratar-se de um espírito cultivado, e não de um bárbaro, um bruto. Pela docilidade da palavra, conquista-se o amigo; isso é o que Sócrates quer insinuar ao discípulo.

Em segundo lugar, Critóbulo mostra-se como verdadeiro discípulo socrático, dada a sua vivacidade e insistência, a insistência com que pergunta, querendo realmente saber como conquistar um amigo.

" - Onde aprender essas receitas? " , pergunta ele ao mestre.

Xenofonte lembra que Sócrates recorre à tradição de Homero, legendário poeta épico grego, que teria vivido no século IX a.C., autor de Ilíada e Odisséia, para identificar a magia das palavras, como aquelas com que as sereias dirigem a Ulisses: "Aproxima-te ilustre Ulisses, honra dos aqueus".

Retruca o discípulo:

" - Mas, Sócrates, não é o canto com que as sereias retinham os outros homens e os impediam de fugir-lhes às seduções?"

Sócrates responde negativamente, esclarecendo que esse canto era endereçado apenas aos amigos da virtude, aos homens virtuosos.

Ora, devemos proferir palavras doces, que encantem nosso pretenso amigo, porém absolutamente imprescindível é que tais palavras sejam verdadeiras. Essa condição exemplifica o quanto Sócrates valoriza a verdade; o amor socrático à verdade, antes de tudo.

Conclui, então, o discípulo:

" - Sem dúvida, Sócrates, queres dizer que, se quisermos adquirir um bom amigo, devemos ser igualmente honestos de palavras e de atos? "

Ao que Sócrates responde:

" - Pensavas então, pudesse homem improbo procurar amigos virtuosos?"

Vemos que Sócrates responde com outra pergunta, o que ilustra o diálogo, a dialética socrática, sempre em busca da verdade.

Ao testemunho de Critóbulo, de que teria visto "maus retóricos amigos de oradores distintos [e] homens sem conhecimentos militares intimamente ligados aos mais hábeis generais" , Sócrates parece não dar atenção: ao pedir para voltarem ao objeto do diálogo, foge, momentaneamente, à contestação do discípulo e radicaliza sua posição ao sugerir que homens maus não se aproximam dos bons.

Homens maus não se aproximam dos bons! Para tornar mais enfática tal concepção, pergunta Sócrates:

" - ... Conheces homens inúteis [possivelmente, aqueles apontados no início do diálogo] que tenham sido capazes de granjear amigos úteis?"

O discípulo nega essa possibilidade. Ao fazer isso, mostra-se confuso, embaraçado, já que acabara de afirmar ter conhecimento da aproximação de maus retóricos a bons oradores, de homens sem conhecimentos militares associarem-se a hábeis generais - entrando, portanto, em visível contradição. Porém, Critóbulo recoloca a questão, agora mais delimitada, perguntando se é fácil a homens honestos encontrar amigos entre os dotados de virtudes. Sócrates ainda não responde ao discípulo essa última questão, porém retorna à objeção anteriormente feita - a de conhecer a associação entre bons e maus oradores, a ligação entre bons e maus militares. Diz ao discípulo:

" - O que te embaraça (...) é veres muitas vezes pessoas que praticam o bem e se abstêm do mal, longe de amigos, atacarem-se umas às outras e tratarem-se mais indignamente que os últimos dos homens".

Nesse ponto, passamos a um outro nível, mais amplo, da discussão, do diálogo travado entre Sócrates e Critóbulo: deixamos o nível pessoal, particular, para estendermos a reflexão ao âmbito, da cidade, para pensarmos em termos políticos. Detecta-se a presença da guerra, da indisposição entre os indivíduos; denuncia-se a constante presença da guerra entre as cidades, até mesmo entre aquelas que "mais amam tudo o que é belo e mais abominam tudo o que é vergonhoso".

Desabafa Critóbulo, numa fala emocionada, dizendo sentir-se completamente desesperançoso de poder adquirir amigos. Reconhece que os maus não podem amar-se uns aos outros, não podem pactuar entre si, visto que são maus. Quanto, porém, aos bons? O que pensar se, também entre esses, prevalece o ódio e a inveja? E, novamente, a pergunta: onde encontrar amigos?

Até aqui, Sócrates prepara o terreno, conduz o diálogo a um clima de crescente tensão e expectativa no sentido de se encontrar a resposta ao problema colocado.

A partir deste momento, em que a tensão e expectativa parecem ter chegado ao limiar do tolerável (lembremos que Critóbulo é descrito por Xenofonte como "impulsivo"!), segue-se uma longa passagem, onde Sócrates finalmente expõe sua tese acerca da amizade.

Afirma, ele, que a amizade é um sentimento natural nos homens, assim como a inimizade.

Prolongando tal concepção para o âmbito da polis, Sócrates sustentará que a concórdia e a paz, assim como a guerra, são naturais, inerentes ao homem. Cabe a ele, procurar a paz e evitar a guerra.

Xenofonte apresenta, então, a fala brilhante de Sócrates, que acreditamos ser importante reproduzir, repetir, aqui, os trechos mais significativos. Diz, ele, a Critóbulo:

"Há em tudo isso (...) diversas maneiras de encarar os fatos. Os homens têm naturalmente [grifo nosso] o sentimento da amizade. Necessitam uns dos outros, capitulam à piedade [isto é, cedem à compaixão], socorrem-se mutuamente, compreendem-se e se mostram gratos. Mas têm também o sentimento da inimizade. Quando suas idéias sobre os bens e os prazeres são as mesmas, lutam por alcançá-los. Quando divididos pelas opiniões, combatem-se uns aos outros: a guerra nasce da disputa e da cólera, a malevolência, dos desejos ambiciosos; o ódio, da inveja."

Abramos, nesse ponto, um pequeno parêntesis, apenas para ressaltar que essa concepção socrática, de que há uma base natural para a guerra e para a paz entre os homens, será retomada algumas décadas mais tarde por Aristóteles, o qual afirmará que a guerra está enxertada, por assim dizer, na natureza humana. Como evitá-la, eis precisamente a questão. A amizade parece então constituir-se no grande antídoto para esse mal, tanto para Sócrates como em Aristóteles. Como todos sabemos, a noção aristotélica de comunidade justa e feliz está baseada na noção de philía, amizade.

Retornemos às palavras de Sócrates e sua apologia da amizade; diz ele:

"Porém, a amizade vence todos os obstáculos para unir os corações virtuosos: é que, graças à virtude, preferem os homens possuir em paz haveres moderados a tudo dominar pela guerra" .
Detenhamo-nos um momento sobre essa importante colocação socrática: a idéia de amizade e, por derivação, a de paz, associa-se à necessidade de auto-domínio, domínio - e não ausência - de paixões, isto é, à moderação, característica que deve estar presente em um homem de virtude. Ora, ao justapormos essas concepções - de auto-domínio, moderação, ao mundo competitivo, belicoso e violento de hoje, podemos vislumbrar o quanto nos afastamos da virtude, o quanto falta-nos o que Sócrates chamou de "corações virtuosos"!

Por vários modos, Sócrates procurará explicitar o que ele entende por "corações virtuosos". Afirma que os homens virtuosos "com fome ou sede, cordialmente dividem os alimentos e a bebida. Cobiçosos de um belo objeto, sabem resistir a si próprios para não afligir aqueles que devem respeitar. Não tomam das riquezas senão sua parte legítima sem nenhuma idéia de cupidez, e demais auxiliam-se uns aos outros. Sabem resolver suas divergências não somente sem prejudicar-se, mas ainda com mútua vantagem, e impedir a cólera de ir até o rompimento. Enfim, repartindo suas riquezas com os outros amigos e olhando os bens dos outros como os seus próprios, dirimem todo pretexto de inveja" . Os homens, movidos pelo sentimento da philía, amizade, são capazes, assim, de dominar as paixões do corpo e a cobiça, evitar a cólera e a inveja, tornando virtuosos os seus corações.

Importante preceito ético, gerador de homens justos, virtuosos, a philía reveste-se de um expressivo valor político, não apenas por promover a concórdia e a união entre os homens. Sócrates vai ainda mais além e estabelece o valor da amizade em sua dimensão política, ao colocar também a necessidade de que esses mesmos homens virtuosos estejam à frente dos negócios públicos.

Diz, ele:

" - Os [homens] que desejam as honras e a autoridade em sua pátria, a fim de pilhar livremente os fundos públicos, violentar os cidadãos e viver na indolência, são corações injustos, perversos, incapazes de qualquer afeição. Mas, o homem que busca as dignidades para pôr-se ao abrigo de toda injustiça e prestar legítimo apoio aos amigos, que, feito magistrado, se esforça por ser útil à pátria, então este homem será incapaz de entender-se com outro cidadão virtuoso como ele? Cercado de homens virtuosos, ser-lhe-á menos fácil servir aos amigos? Apoiados pelos cidadãos honestos, será menos poderoso para fazer bem à pátria?"

Evidentemente, a resposta é negativa, visto que os semelhantes se atraem, e se esses semelhantes virtuosos estabelecem vínculos entre si, o resultado só poderá ser o bem.

Sócrates discorre ainda sobre o exemplo das competições, dos combates gímnicos, lembrando que são realizados entre iguais, caso contrário, os mais fortes sempre venceriam, o que é inconcebível. Da mesma forma, nas lutas políticas, os vitoriosos deverão estar entre os virtuosos. Como, nessas lutas, não se impede um cidadão de unir seus esforços aos de outro, para o bem da pátria, também parece ser vantajoso, ao se tomar parte no governo, cercar-se de excelentes amigos, tê-los antes por associados e colaboradores, que por antagonistas.

Sócrates propõe, assim, a cooperação entre os homens, sempre baseada na virtude como forma de atenuar conflitos. Conclui com estas sábias e eloqüentes palavras:

" ... Se há lutas, há mister aliados, e tantos mais quanto se tenha de combater contra homens de mérito e virtude. (...) Necessário é fazer bem aos que queiram tornar-se nossos aliados, a fim de dar-lhes coragem; e antes beneficiar poucos homens virtuosos que um exército de maus, desde que os maus saem muito mais caros que as pessoas de bem".

Com isso, Sócrates incita-nos a sermos bons. Dirige-se ao discípulo, acalmando-o e instigando-o a tornar-se bom e buscar os homens virtuosos; esta é a sua receita para conquistar amigos. Em suas próprias palavras:

" - Fica tranqüilo, Critóbulo; procura fazer-te bom e, uma vez bom, põe-te à caça dos corações virtuosos".

Sócrates, reconhecidamente um homem bom, coloca-se à disposição do discípulo para auxiliá-lo nessa tarefa, já que afirma ter alguma experiência nisso. Nesse momento, temos a última parte do diálogo travado entre Sócrates e Critóbulo, onde finalmente o mestre dará de modo mais pontual os conselhos para a conquista de amigos.

Sócrates relata a sua própria experiência. Deve-se fazer ver ao amigo em potencial o quanto é importante a sua amizade, jamais lançando mão de coação e violência, mas sim por meio de encantamento, de sedução - exatamente como faziam as sereias na Odisséia de Homero. Mas, como primeira e grande exigência para conseguir amigos virtuosos, ser sincero, verdadeiro: ao invés de proclamar virtudes que não se tenha, tudo fazer por tê-las. Também, jamais acercar-se dos amigos em potencial devido a vantagens que se queira usufruir. Portanto, entre os deveres do amigo, não se incluem nem coação e violência, nem constrangimentos menores, nem a mentira.

Pede, Sócrates, então, ao discípulo:

" - Quando quiseres ligar-te a alguém, permitirás que eu te denuncie a ele, que lhe diga que o admiras e desejarias ser seu amigo".

Ao consentimento de Critóbulo, Sócrates revela as qualidades essenciais para se ter amigos, qualidades estas que estariam presentes em seu discípulo, agora, já devidamente instruído.

Além da admiração, inclinação, propriamente, seria preciso:

· Ser zeloso de seus amigos;
· Sentir-se feliz em tê-los virtuosos;
· Orgulhar-se das boas ações de seu amigo, como se fossem suas;
· Alegrar-se com a prosperidade de seu amigo, como se fosse a sua própria;
· Não medir esforços, sacrifícios, para assegurar o bem ao amigo;

E, por fim, adotar por máxima de virtude: vencer os amigos em benefícios e os inimigos em ultrajes.

Diante dessa exposição, o discípulo mostra-se, no entanto, contrariado: pergunta a Sócrates se este não faria outros comentários elogiosos ao futuro amigo - caso fosse necessário.

Ora, sabemos que o compromisso de Sócrates é com a verdade. Assim sendo, ele o afirma, não poderá - de modo algum - fazer elogios imerecidos a Critóbulo.

Para reforçar esta sua posição, Sócrates lembra de algumas situações exemplares a esse respeito, uma das quais, real e outras duas, hipotéticas, envolvendo o próprio discípulo.

A primeira: "... Ouvi dizer um dia Aspásia que as boas casamenteiras, não falando senão a verdade, são felizes no casar os homens, ao passo que de nada serviriam louvores descabidos, pois os esposos enganados se detestam mutuamente e maldizem quem os uniu" . Ou seja, a mentira não leva à união e à virtude.

A segunda situação:

"Suponhamos vá eu [isto é, Sócrates] fazer de ti um falso elogio a um piloto de quem deseje ver-te amigo, lhe diga seres bom timoneiro, e que, confiante em mim, esse piloto entregue seus navios em tuas mãos, que jamais governaram um leme: teria alguma esperança de não perder-te ao mesmo tempo que o navio?" Isto é, a mentira promove o mal individual; envolve perdas materiais e humanas.

A terceira situação - também hipotética, porém desconcertante, e, por seus matizes, de alcance ainda maior:

"Se, da mesma forma, por força de mentiras, persuadisse coletivamente toda a cidade a entregar-se a ti como a um bom general, sábio jurisconsulto, hábil político, a que males, pensas, não te exporias a ti e ao Estado? Se, enfim, convencesse insuladamente alguns cidadãos a te confiarem a gestão de seus bens, após haver-lhes dito falsamente seres administrador econômico e zeloso, uma vez posto à prova não te patentearias a um tempo desastrado e ridículo? A mentira, nesse caso, tem um alcance que envolve todo o corpo social.

Com isso, Sócrates procura mostrar ao seu discípulo, Critóbulo, que é seu amigo, porém, fiel à verdade, sobre todas as coisas; que a verdade deve sempre permear e prevalecer em uma relação de amigos.

Não faltar nunca à verdade; firmar relações entre os homens fundadas na verdade e transparência; eis finalmente a garantia de vínculos consistentes, seguros, duradouros; base pare se construir uma cidade justa e feliz.

Sócrates concluirá o diálogo com algo edificante e belo: ao invés de ir em busca de falsos elogios, o homem deve lutar para que aquilo de que deseja ser qualificado, se torne realmente verdade.

"Pois bem! Critóbulo, tudo fazer por sê-lo - eis o caminho mais seguro, mais digno, se queres ter fama de probo" , diz Sócrates. Ambos estarão de acordo com as palavras finais, incisivas, do mestre:

"Tudo o que os homens chamam virtude - convencer-te-á a reflexão - aumenta pelo estudo e exercício."

Enfim, lutar para ser o que se queira ser: honrado, justo, bom - pelo estudo e exercício - e assim merecer elogios verdadeiros... Essa é a receita socrática. Para conquistar o amigo; para garantir a harmonia na polis!

Depois de Sócrates, muitos outros pensadores, entre os quais Aristóteles (384 - 322 a.C.), irão basear a felicidade da cidade na philía, nas relações de amizade entre os homens.

Valor ao mesmo tempo ético e político, a amizade depende, em Sócrates, de verdade e transparência, antes de tudo.

Revivido aqui, nesta noite, por nós, tendo se passado mais de dois mil e quatrocentos anos, o diálogo estabelecido entre Sócrates e seu impertinente discípulo, descrito por Xenofonte, nos coloca a pensar - nos dá muito o que pensar.

Com efeito, em um mundo complexo, hierarquizado, hostil e violento, movido por valores da aparência e do espetáculo - onde parece não haver quase lugar para laços de solidariedade e amizade - ressoam fortes as recomendações de Sócrates: o cuidado a se ter com a linguagem; o esforço a ser empreendido para se tornar verdadeiramente o que se queira ser e, assim... conquistar amigos - o maior dos bens a que um homem possa almejar - e fonte de paz!

Por ora, e seguido os conselhos repetidos por Sócrates, prefiro concluir com certas palavras mágicas, uma breve saudação muitas vezes usada pelos gregos para manifestar a alegria experimentada pela volta de um amigo ausente, e que faço uso para expressar a alegria de ter estado aqui, entre vocês.

"Amigo, minha doce luz!"

Obrigada.

Professora Silvia Gombi Borges dos Santos
Doutoranda em Filosofia, pela Universidade de São Paulo; mestre em Filosofia, pela Universidade de São Paulo; professora da Universidade do Estado de Minas Gerais, campus fundacional de Ituiutaba.